Apenas Mais Um

9 de novembro de 2006

Apenas Mais Um
Por Annaterra Lima

No espelho apenas os seus olhos inexpressivos. Ela sentia-se cansada demais para se arrumar. Colocou a primeira roupa que encontrou no guarda-roupa. Pintou os olhos de preto. Amarrou os cabelos desordenadamente. Pegou a bolsa e se perdeu na noite escura. Apesar do aparente desleixo, ela estava bonita. Chegou um pouco atrasada, como de costume. Algumas coisas sempre permanecem. Sorrisos breves e palavras trocadas. Eu sou fulaninho; e eu sou sicraninho. Quer beber alguma coisa? Uma caipirinha, por favor. Ela sentou-se ao lado dele, já um pouco desconcertada com o seu olhar insistente. Ele era um corpo bonito, ela percebeu de imediato. Se arrependeu por não ter se arrumado melhor. Olhou-se rapidamente no espelho que trazia dentro da bolsa. Não gostou do que viu. Também não deu importância. Tentou fingir naturalidade e indiferença. Uma confusão de sentimentos se apoderava de seu corpo. Deu agora para sentir medo, para sentir-se insegura. Talvez ele esteja interessado, talvez ele esteja apenas sendo simpático. Preferiu manter-se distante. Desacostumou-se a arriscar, a ser. Logo ela, que estava tão acostumada a ser-se. Tudo isso por culpa dele, que provocou profundas mudanças em seu corpo. Ela já não é mais a mesma por culpa exclusiva dele.
Às vezes ela sente vontade de chorar, outras de rir. Impossível entendê-la. E aquele seu sorriso oblíquo, enigmático, sombrio, de uma tristeza indefinível: sábado, oito horas de noite, faz frio e ela insiste em permanecer sozinha, mesmo rodeada de pessoas, mesmo ao lado dele, ela teima em permanecer sozinha. Vozes diferentes e incompreensíveis penetram a sua alma com força e se confundem dentro do seu corpo: apenas ruídos silenciosos embolados com a música ao fundo. Ela se perde entre eles, ela se perde constantemente entre as estrelas. Pensa no quanto seria bom finalmente encontrar alguém para amar, para lhe amar. Ou então pensa naquele outro, de novo no outro, que tanto tenta esquecer. Ela ainda sente saudade. Ela ainda ama, apesar da dor. Algumas coisas são eternas, ela descobre, entre suspiros abafados. Quando ela bebe fica assim: fora de si, pensando besteiras, relembrando as suas dores, se machucando, se reconstruindo. Jurou não mais chorar, nem por ele nem por ninguém. Prometeu que iria esquecê-lo. Estava ali justamente para esquecê-lo. Fugiu imediatamente da sua imagem. Outras instantaneamente vieram. Fantasmas que persistem em persegui-la. Olhou para o lado. Lá estava ele: risonho e eufórico.
Ela já conheceu diversos homens. Já se deitou com diversos homens. Já se apaixonou por diversos homens. E chorou amargamente por todos eles. Estranhamente suas histórias sempre terminam em lágrimas. Estranhamente não! geralmente ela se joga, é uma menina corajosa, e acaba por se machucar. Poucos conseguem compreender a impulsividade de sua alma, que só quer amar, seja por um dia, uma hora ou um mês. O tempo nunca lhe importou mesmo. A sua vida é construída na sucessão do agora. Nega-se a ser o tipo de mulher que resume sua vida exclusivamente ao outro. Sempre foi independente. Vai ao cinema sozinha, estuda francês, sabe cozinhar, ganha o seu próprio dinheiro, desenha o seu rosto em folhas de papel, sonha em ser escritora, planeja o futuro, tem seus amigos, que não são muitos, mas são os seus amigos. Porém às vezes sente falta, já não consegue esconder. O que mais machuca é quando chega o domingo: nada para fazer, um monte de besteiras na televisão, os telefones mudos – chama, chama e ninguém atende, ninguém em casa. Todos estão ocupados, muito bem acompanhados para lembrar-se dela, que encolhida debaixo do edredom se treme de frio, apesar do sol lá fora. É triste. É vazio. Lembra quando sua irmã disse que ninguém é capaz de ser feliz estando sozinho. É absurdo uma mulher achar que só pode ser realmente feliz ao lado de alguém. Recusa-se a aceitar tamanha besteira. Ela às vezes é feliz. Tem os seus livros, que são tão bons quantos seus amores. Também tem seus cd’s. E quando nada disso basta, ela tem suas histórias de mentirinha com os seus príncipes de mentirinha. Sempre gostou de brincar de faz-de-conta. Ultimamente ela faz-de-conta que não dói. É que só agora descobriu que também quer se sentir um pouco presa.
Ela nunca conseguiu ser exclusivamente corpo. Ela nunca conseguiu ser completamente fria. Deve ser por isso que constantemente se machuca. Não consegue não se envolver. É preciso preservar-se, essa é a regra fundamental. Talvez não se entregar tanto, não amar tanto, não esperar tanto. Ela só insiste em buscar mais do que corpos suados, beijos molhados e mãos indiscretas. Só isso que busca. Como nunca encontrou, deixou de procurar. Uma amiga tenta lhe ensinar que as coisas, às vezes, simplesmente acontecem. Ela tenta acreditar nisso, mas é muito impaciente para apenas esperar. Um dia desses, a propósito, enquanto aguardava o ônibus na parada, conheceu um cara bastante interessante. Juliano era o nome dele. Passaram horas conversando, se conhecendo. Aquela era uma boa oportunidade das coisas simplesmente acontecerem. Mas ela não teve coragem de pedir o número do seu celular nem ele se inclinou a pedir o dela. Acabaram por seguir os seus caminhos separadamente. Talvez nunca mais se encontrem. É provável. Com o outro também foi por acaso. Se ela soubesse, não teria tido coragem de pedir o número do seu celular. Agora falta coragem até de olhar para os lados. Prefere manter-se indiferente aos olhares de cobiça que geralmente lhe oferecem, como o dele. Mas como sua amiga mesmo disse, algumas coisas simplesmente acontecem. Parece inevitável.
Depois de três doses eles já estavam mais próximos, mais íntimos, mais juntos. Finalmente ela pôde reparar melhor nos detalhes do seu rosto, nos contornos da sua pele, no seu sorriso de menino, no seu cheiro. Desviou rapidamente o olhar e sentiu-se envergonhada quando ele percebeu a sua indiscrição. Sorriram. Apenas. Minutos depois já estavam se beijando. Por motivos que desconheço, ela acreditou que aquela história seria diferente, que com ele seria diferente. Ela realmente não aprende. Vive cometendo os mesmos erros, apesar das decepções que carrega nas costas. É essa mania estranha de criar expectativas em cima de um simples olhar. Ela acabou indo para a casa dele, para a cama dele. Fizeram amor duas vezes: assim que chegaram e no meio da madrugada. Depois dormiram juntinhos. Ele roncou bastante durante a noite. Ela pouco se importou. Embrenhou-se delicadamente entre seus braços e sonhou com o outro, que já não existia. Acordaram ao meio-dia do domingo morrendo de fome. Assistiram televisão, conversaram besteiras, sempre abraçados. Ele prometeu ligar no dia seguinte. Ela nem se preocupou, acreditou nas suas mentiras sinceras. Afinal, ela sempre acredita. Mas as horas foram passando, assim como os dias, e nada dele. Acabou por sair com um dos seus diversos amantes. Não fizeram amor, nem muito menos dormiram abraçados; na verdade, mal se falaram, tiraram metodicamente as roupas e simplesmente se fundiram com pressa. Novamente sentiu-se vazia. Quis chorar, fugir, pedir um pouco de amor, pensou nele, lembrou dela, dormiu esperando a sua ligação, que até agora não veio e que provavelmente não virá. Novamente ela estava enganada. Ele era apenas mais um. Melhor esquecer.



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amo esse conto.
=D
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